Degustação

Capítulo 1


E
u nunca pensei em como seria se um dia acordasse em outra realidade, por isso nunca me preparei para uma coisa assim. Também pudera, quem poderia imaginar que a vida pudesse mudar como num passe de mágica? Eu também não acreditava nisso.
Na minha vida, nada veio fácil. Tudo que conquistei foi com muito esforço e trabalho... Minha rotina sempre foi intensa, nunca tive tempo para descansar ou para tirar umas férias prolongadas. Jamais reclamei da vida, sempre observei que existem pessoas em situação mais difícil do que a minha. Tenho o ensino médio completo, trabalho no hotel que fica em frente às Cataratas do Iguaçu. Ser recepcionista nesta época do ano requer um esforço enorme, mesmo assim aproveito a temporada para uma renda extra como guia turístico de Foz do Iguaçu.

Acordei assustada com meu despertador, avisando que já são cinco horas da manhã e o dia nem clareou ainda. Já tem três noites que não durmo direito... O calor do mês de janeiro é insuportável e meu ventilador velho não dá conta do recado. Vesti rapidamente o meu uniforme: calça preta e camisa branca, colete da mesma cor da calça e um lenço vermelho. No meu colete, coloquei um broche de metal na altura do seio, escrito Larissa, que é o meu nome. Corri para o banheiro para escovar os dentes e arrumar meu cabelo com o penteado de todos os dias: um coque apertado no alto da cabeça. Não demorou, escutei a buzina do carro da empresa esperando para me levar ao trabalho.
Que droga, já são 5h45. Peguei minha bolsa rapidamente e saltei porta afora.
Bom dia, Walter!
Bom dia! Como você está, Larissa? Dormiu bem? disse o motorista do microônibus, um homem de meia idade e estatura mediana, pele bem clara, olhos e cabelo castanho-claros.
Não dormi direito esta noite, mas estou bem, estou me acostumando com a falta de sono.
Se continuar assim, você vai ter de ir ao médico. Que boca grande a minha.
Até parece... É por causa do calor.Eu não gosto que se preocupem comigo.
Tá bom, então.
Ele fez uma careta
Fui falei rapidamente e caminhei mais rápido ainda, antes que ele começasse o sermão do dia sobre como eu deveria cuidar da minha saúde, estava sem humor para isso.
Até mais — Walter respondeu.
Fui até as últimas poltronas e me acomodei para tirar uma soneca, enquanto o ônibus fazia seu percurso diário e se dirigia para o hotel. Quando percebi, já estávamos entrando no Parque Nacional do Iguaçu, e em menos de cinco minutos chegamos. Quando ele estacionou, eu esperei todos saírem, admirando através da janela as belezas da natureza. Em meio a uma abertura das árvores, dava para ver várias cascatas. Levantei e fui até a porta do ônibus, olhei o relógio e faltava meia hora para o horário do meu trabalho, me despedi de Walter e resolvi dar uma pequena caminhada antes de ir. Isso iria me custar o café da manhã, mas valia a pena contemplar tudo. Andei até as barras de proteção e comecei a descer as escadarias que levam à passarela que vai à Garganta do Diabo. A bruma de pura água que se levanta das quedas começou a molhar a minha roupa, as gotículas que se formaram no meu rosto escorriam como se fosse suor. A brisa era suave e, ao mesmo tempo, o cheiro da mata e da umidade, era tão relaxante. Antes que eu chegasse à ponta da passarela, senti uma energia diferente de tudo que um dia senti na minha vida: uma certa tontura, minhas pernas bambas... O que era muito estranho, por isso tive vontade de correr dali, quando ouvi uma voz estranha dizendo em meu ouvido:
Larissa, venha!
Corri. Entrei no hotel meio tonta. Fui até o vestiário. Sequei meu rosto e meus braços e fui para a recepção, ainda faltava um tempo para o meu horário, então sentei em uma poltrona olhando tudo ao meu redor, os sofás colocados casualmente para algum hóspede se sentar, e fiquei impressionada com a elegância do lugar, todo em tom dourado. Estava pensando no que acabara de acontecer comigo, sem encontrar alternativa que me tirasse da situação de louca. Bom, talvez sejam minhas noites maldormidas.
O dia se arrastou, eu não via a hora de ir para casa, sempre trabalho como guia de turismo depois do meu expediente; mas hoje não, o que era bom, pois estava exausta e precisava descansar, quem sabe assim as alucinações passariam.
Entrei em casa e olhei meu fogão velho e vermelho, do tempo da minha avó, e minha mesa de madeira com uma cadeira. Eu tinha que fazer alguma coisa pra comer, só que estava sem fome. Deveria estar ficando doente mesmo, então decidi tomar um banho bem gelado. Tirei a roupa e coloquei-a pendurada num prego atrás da porta, e entrei no chuveiro. A água saiu quente por causa do calor, mas depois de alguns instantes veio gelada, refrescando o meu corpo... Tontura... Que estranho.
Saí do banho e não me sequei, fui direto para a cama, liguei meu ventilador na potência máxima, me deitei e adormeci. Tive um pesadelo, muito real por sinal. Nele eu estava me afogando, me debatendo nas correntezas das águas revoltas, faltavam-me forças para lutar, me assustei quando acordei com meu próprio grito.
Olhei a janela, já estava escuro, o que significava que eu havia dormido por horas. Olhei no relógio, 19h35. Era 14h45 quando eu me deitei.
O telefone tocou... Estendi a mão até o criado-mudo para atender a ligação.
Alô! sussurrei.
Larissa?
Sim, quem gostaria?
Lari, é a Mel. Estou ligando para saber se você quer sair hoje com a galera, tem dias que você não dá notícias, aconteceu alguma coisa?
Mel é uma amiga que conheci logo que comecei a trabalhar no Hotel das Cataratas, ela era recepcionista também, pouco tempo depois saiu, mas a nossa amizade continuou.
Não. Está tudo bem. Muito trabalho ultimamente e pouco descanso. Aonde vocês vão?
Nós estávamos pensando em ir a uma pizzaria e depois no Celeiro, ouvi dizer que tem uma banda muito boa tocando lá hoje.
Deixa pra próxima, amanhã tenho que acordar cedo.
Pensando bem, talvez seja uma boa ideia ir com eles comer alguma coisa. Minha barriga roncou só pra mostrar qual era a sua posição.
Pare com isso! Tem que tirar um tempo para você, desse jeito vai enlouquecer.
Vou à pizzaria e depois volto para casa. A balada, vou deixar para outro dia.
Que seja. Irá se arrepender se não for.
Ignorei este comentário.
Vou me arrumar.
Daqui a meia hora pegamos você.
Até.
Desliguei o telefone e me espreguicei.
Ai, ai...Levantei e tomei um banho rápido, fui até a janela e olhei como o céu estava estrelado, muito lindo. Que preguiça de me arrumar e aquela tontura surgindo de novo... Com muito esforço, abri meu guarda-roupa, peguei uma blusinha verde-água (a minha favorita), uma calça jeans qualquer e escolhi um tamanco combinando com meu look. Meu cabelo estava horrível, puxei num rabo de cavalo deixando uma mecha na frente para colocar atrás da orelha, me maquiei um pouco para esconder as olheiras e passei um perfume para completar e pronto... Acho que estou apresentável! Olhei no relógio, ainda faltavam uns cinco minutos para eles chegarem. Liguei a televisão, não achei nada de interessante em nenhum canal. O barulho do carro chamou minha atenção, antes que tocassem a buzina, desliguei a televisão da tomada, peguei minha bolsa e saí correndo.
E aí, Larissa, tudo bem? — perguntou um rapaz esguio, de cabelo castanho-escuro e olhos verdes, que estava sorrindo para mim. Mateus era namorado da Mel há pelo menos uns dois anos. No início eu não gostava muito dele, e esse sentimento era recíproco.
Mel tinha saído do banco da frente para dar lugar para eu passar para o de trás.
Oi, Mateus. Quanto tempo! Trabalhando muito?
Sabe como é.
Olhei para a Mel, difícil não reparar na sua beleza excêntrica, com seus cabelos negros até a cintura, olhos negros e pele morena clara, realmente bonita e naquele momento estava me olhando de uma maneira que não me deixou muito tranquila... Ela estava aprontando.
No banco de trás do Gol vermelho, estava sentado um rapaz desconhecido, de pele clara, cabelos escuros e ondulados, olhos castanho-escuros quase pretos, que me olhava de uma forma estranha.
Quero apresentar meu amigo Saulo, colega de faculdade. Saulo esta é Larissa, uma grande amiga, de longa data disse Mateus. Ele estava cursando o terceiro período de Sistemas de Informação, esta era a primeira vez que algum colega saía conosco, pelo menos a primeira vez em que eu estivesse junto.
Oi, é um prazer te conhecer — Saulo se antecipou.
O prazer é meu.
Senti qual era a intenção dos dois trazendo um amigo de Mateus para sair conosco, o estranho era que ela me falou de uma galera. Sair em quatro indica um encontro duplo, não gostei da ideia.
Mel, cadê o pessoal?
Amanda ligou desmarcando, parece que chegou visita na casa dela de última hora. Henrique não sai sem ela, e as outras meninas, espero que já estejam lá, isso se não tiverem encontrado companhia mais interessante.
Muito conveniente, pensei comigo. Tudo que ela falou fazia sentido: Amanda e Henrique não se largavam e muitas vezes Samanta e Laura nos deixaram plantadas esperando, enquanto elas aproveitavam a noite em algum outro lugar da cidade, muito bem acompanhadas, companhia de uma noite e nada mais.
Justo hoje que a última coisa que quero é uma paquera! Espero fervorosamente que elas estejam onde Mel disse que estariam. Meus pensamentos foram interrompidos.
Larissa! Saulo me chamou, e de má vontade respondi: — Sim?
Posso te chamar de Lari?
Me desculpa, mas prefiro que me chame de Larissa, é que não gosto muito de apelidos.
Entendo... Desculpe-me.
Tudo bem.
Você mora há muito tempo aqui em Foz?
Sim dei uma resposta curta, querendo colocar um ponto final na conversa.
Estava na cara que ele estava querendo flertar comigo. Virei a cara e olhei para a janela, vendo a rua que passava. Ele pareceu entender meu silêncio, e também fez o mesmo. Despertou minha curiosidade, quando ajo assim os rapazes em geral tentam penetrar na minha armadura, mas o silêncio dele foi surpreendente de tal maneira, que perguntei:
Você mora em qual bairro?
Ele me fitou com os olhos confusos, mas sorriu e respondeu:
Moro no Polo Centro.
Humm.
Por quê?
Só curiosidade.
Mel olhou para trás e gostou de ver alguma conversa surgindo ali.
Agora eu estou curioso...disse ele.
Com o quê?
Agora há pouco tentei puxar conversa, mas você não pareceu muito interessada, o que te fez mudar de ideia?
Ops! Isso é o que eu chamo de direta! Senti o rubor em minha face.
Foi impressão sua.  
Só me resta esperar que ele deixe essa passar. Idiota!
Então, desculpe. Foi só impressão.
Ufa!!!
─ Então, vai falar há quanto tempo mora em Foz do Iguaçu?
Eu nasci aqui e nunca morei em outro lugar.
Olhei para ele tentando entender o porquê de se importar tanto.
Interessante... disse como se falasse consigo mesmo.
Eu não respondi, esperei que ele terminasse a frase.
Eu nunca senti alguém com sua energia, é algo sobrenatural.
Como?
Eu sou uma pessoa muito sensível, eu consigo sentir a energia que emana das pessoas. Não sei como explicar direito, só sei que sinto, mas a energia que vem de você é algo muito maior, é quase como se você não fosse humana.
Do que está falando? Não estou entendendo? Mel e Mateus se interessaram pelo assunto ou só queriam achar algo para tirar sarro.
Bom, isso explica muito as coisas, né Mateus?falou Mel em meio a risos. Encarei-a com cara feia, não via graça em nada.
Que história é essa de energia que você está falando? Você nunca tinha falado disso antes, achei que essas coisas eram de mulher e agora você vem com essa?!Mateus estava tentando entender, mas pela sua cara eu podia ver que a qualquer momento isso ia ser demais para ele, e explodiria de tanto rir.
Agora é minha vez.
Agora quem está curiosa sou eu.
Devo imaginar... Nunca ouviu algo assim?Saulo olhava para mim.
Nunca! Isso é ridículo! Sou muito normal para não ser uma humana e, apesar de eu ser adotada, não que isso venha ao caso, creio que não sou uma alienígena, acho que teria uma nave se isso fosse verdade.
Minha cabeça estava girando, tentando entender como um estranho podia dizer tais coisas. Sempre soube que era um pouco estranha, mas e daí? Todo mundo é diferente.
Não foi isso que eu quis dizer, mas sim que você é alguém especial. Não sei o porquê, mas é. Só isso, mais nada, e não sei se percebeu, mas eu estou fazendo papel de bobo aqui, ao abordar este assunto.
Devia ter pensado nisso antes de ter falado... E o que você queria que eu pensasse, nem nos conhecemos e você já me vem com essa?!
Isso é verdade, mas não pude evitar.
Agora Mel e Mateus riam de verdade, mas eu e Saulo estávamos absortos em nossa conversa, era como se eles não existissem. Percebi que parecia que o conhecia há muito tempo, algo além da minha compreensão. Nossa hostilidade foi crescendo a cada minuto, estávamos quase discutindo, o que era no mínimo estranho, levando em conta que eu acabara de conhecê-lo. As piadas da Mel não pareciam afetá-lo da forma como as minhas palavras foram ditas e o mesmo acontecia comigo. Eu já estava nervosa.
Chegamos à pizzaria, e para minha alegria, Samanta e Laura estavam lá conforme o combinado. Isso era muito bom, pois pude deixar de lado Saulo e seu assunto irritante, e me concentrei nas meninas tentando saber todas as novidades. Não que isso realmente importasse.
Percebi que Saulo ainda me encarava de forma estranha, e se antes não queria ir ao Celeiro, agora era assunto decidido. Irritava-me a forma como sua presença me afetava. Não via a hora de poder ir para casa. Depois de jantarmos, pedi a Laura que me levasse embora, pois não queria o desprazer de conviver com Saulo por mais nem um minuto sequer. Ela hesitou, mas por fim concordou. Ninguém ousou discutir comigo quando disse que iria para casa. Foi assim que minha noite acabou.


Capítulo 2


R
olei na cama de um lado para o outro, tentando dormir e nada... Mais uma noite insone para minha coleção, nem mesmo o fato do clima ter refrescado ajudou, teria que ir ao médico, mas não queria pensar nisso agora.
Lembrei-me do que Saulo tinha me falado na noite anterior, e isso só me deixou mais incomodada. Por fim, desisti de dormir e liguei o abajur.
Olhei para o relógio planejando o que iria fazer no restante da noite e fiquei assustada, estava quase na hora do despertador tocar. Como podia ser? Parecia que acabara de deitar, não me lembrava de ter dormido, tentei entender o que aconteceu, mas simplesmente não tinha explicação. Alonguei-me e, para minha surpresa, me senti descansada como há tempos não me sentia.
Fiz uma superprodução, queria ver a cara dos meus colegas quando me vissem. Escutei a buzina, peguei minha mochila e entrei saltitante no ônibus.
Bom dia, Walter!
Bom dia, Larissa. Pelo visto você dormiu melhor esta noite.
Se dormi não sei, mas o que importa? Estou me sentindo bem.
Digamos que sim.
Vai lá para o fundo hoje?
Não. Vou ficar por aqui mesmo. Apontei para as primeiras poltronas do ônibus.
Então, quer dizer que hoje está disposta a entrar na bagunça com os outros?
Ando muito distante de tudo acho melhor despertar.
Já estava preocupado com você, tem alguns meses que não é mais aquela menina sorridente e extrovertida de antes, os funcionários novos nem a conhecem. Você se limita a apenas cumprimentá-los, quando eu falo para alguém como você era, ninguém acredita.
Tinha que concordar, nem quando perdi meus pais adotivos na adolescência, ou mesmo quando me separei, não fiquei tão afastada do mundo como estava sendo ultimamente. O pior de tudo é que nem sei o porquê, simplesmente mudei, sem explicação nenhuma.
Vou me socializar, pelo menos vou tentar.
─ Então, seja bem-vinda.
As pessoas começaram a entrar no ônibus e, embora tentasse me relacionar com elas, era difícil. Antes não era assim, não acho que seja depressão, eu estou muito bem sentimentalmente e sozinha, a separação me devolveu a vida.

No hotel, tomei meu café da manhã com os outros funcionários, conversei um pouco, mas logo tive que ir para o meu posto de trabalho, olhei o calendário e não gostei do que vi, faltava menos de um mês para o meu aniversário.
O telefone do hotel tocou.
Recepção Resort Cataratas, Larissa, bom dia!
Larissa é a Mel. Desculpe ligar no seu trabalho.
Oi, aconteceu alguma coisa?
Não. É que vamos passear nas Cataratas hoje à tarde e queremos que você vá conosco.
Não posso. Hoje agendei um passeio para a Usina de Itaipu com um grupo de turistas.
Que pena! Saulo queria aproveitar a oportunidade para se desculpar, é aniversário dele. Ele tinha esperança de ter seu perdão como presente ou algo assim.
─ Ha-ha, até parece, ele vai sobreviver!
Coitado!
Tenho que desligar, me liga à noite.
─ Está bem então, beijos.
Beijinhos.
Desliguei o telefone, e sem querer me peguei pensando no Saulo, quanto menos queria pensar nele, acontecia exatamente o contrário.
A manhã passou rapidamente e já estava na hora de ir embora.

Peguei o primeiro ônibus que levava à saída do Parque Nacional e fui a outro resort que ficava nas proximidades.
O grupo já estava reunido esperando por mim.
O passeio incluía uma visita ao Ecomuseu da Itaipu pra conhecer um pouco da história do lugar, e logo depois a usina.
Os turistas de hoje tiveram sorte, por causa da alta vazão das águas, coisa que não é muito comum nessa época do ano, duas comportas estavam abertas fazendo um espetáculo à parte. Mais tarde, decidiram ficar até o anoitecer para verem o espetáculo de luzes na Usina Hidrelétrica de Itaipu. Todos ficaram admirados. Quando meu dia terminou, eu estava exausta.

Entrei em casa, o telefone estava tocando e corri para atendê-lo.
Alô!
Larissa?
Mel?
Sim, sou eu. Aconteceu algo horrível. Ela estava desesperada! Percebi pelo seu tom de voz assustado. Nesta hora foi como se eu tivesse tido uma descarga elétrica! Gelei instantaneamente.
O que aconteceu?perguntei.
Saulo morreu! A voz do outro lado estava trêmula, quase chorando. Eu fiquei paralisada
Quer dizer, eu acho que ele morreu, ele caiu na Garganta do Diabo.
Ah, meu Deus! Ah, meu Deus! É difícil, é impossível! Com certeza, ele morreu! Ah, não! Senti como se meu mundo estivesse desmoronando.
Larissa, você está aí? Levei alguns segundos para assimilar.
Sim, estou. Como aconteceu?
Só percebi que estava chorando quando minhas lágrimas caíram como cachoeira em minha mão.
Ele comentou que estava sentindo uma tontura, não demos importância, então ele se desequilibrou e tombou por cima da barra de proteção. Tudo foi muito rápido, não conseguimos impedir, a culpa é nossa!
Mel demorou umas duas vezes mais para falar esta frase, e ainda assim tive que me concentrar para entender o que ela estava falando.
─ Para de se culpar, acidentes acontecem, vocês não têm culpa por ele ter passado mal.
─ Mas se o tivéssemos levado a sério, teríamos ido embora e nada disso tinha acontecido.
Onde você está? Estou indo aí agora.
Não venha. Estou na delegacia. Liga a televisão no canal 16, depois te ligo. Até mais.
Ela nem esperou eu me despedir e desligou. Liguei a TV, e a repórter estava entrevistando um salva-vidas que estava de plantão. Estavam tendo dificuldades para encontrar o corpo, ele havia caído em uma região de difícil acesso. Algumas medidas de segurança tiveram que ser tomadas para salvaguardar as vidas dos bombeiros. As buscas iriam se estender madrugada adentro.
Quando percebi, estava soluçando de tanto chorar, e acabei adormecendo abraçada em minhas pernas na frente da TV.

No outro dia, eu estava horrível, com febre, dor de cabeça e não consegui ir para o trabalho. Fui ao médico que me recomendou ficar em casa por, pelo menos, três dias de molho por conta da gripe. Que maravilha!
À tarde, Mel ligou me dizendo que tudo estava na mesma. Falei para ela que ia passar três dias em casa, ela veio ficar comigo. Nas noites seguintes, durante as poucas horas que dormi, tive pesadelos com muita água, onde eu estava me afogando, e Saulo estava presente na maioria deles, tentando me ajudar.
Depois de três dias passando mal, cheguei a uma conclusão: definitivamente, eu estava morrendo, mas sem saber o que fazer. Mesmo me sentindo um lixo, fui trabalhar me arrastando, quando a condução chegou.
Oi, Larissa!
Oi ─ respondi com uma careta.
O que você tem, menina? Está doente? Por que não foi ao médico?
Eu fui, mas já acabaram meus dias de atestado.
Por que não foi novamente?
Estou bem... ─ menti, mas não convenci ninguém. Sem dar tempo para argumentos, corri e me sentei no fundo do ônibus como de costume, e encostei a cabeça na janela. Queria com todas as minhas forças dormir, mas era um esforço inútil, pois a cada dia que passava, dormia menos. O meu corpo doía e a falta de ar era constante.
Tentei trabalhar, mas meu organismo não respondia aos meus comandos, por fim fui parar no médico de novo, contra a minha vontade, é claro. Mas no fundo até fiquei grata, pois senti que a qualquer momento iria desmaiar. Nunca havia ficado doente em minha vida, nem mesmo com um simples resfriado, agora que me atentei a este fato, eu não fazia ideia do quanto isso era ruim. Por que será que nunca adoeci? Não é normal.

A próxima quinzena demorou muito para passar, talvez por causa do meu estado físico. Os médicos não sabem dizer o que está acontecendo, querem me furar (agulhas, odeio agulhas!), precisam fazer exames, só que isso é algo que me assusta, por isso fugi do hospital. Idiotice a minha, eu sei, mas não pude evitar. Não tenho medo, mas sinto como se fosse muito errado deixar que colhessem o meu sangue. Mesmo que seja por uma boa razão, não pude deixar.
Mel só se ausentava para ir trabalhar e logo voltava para ver como eu estava. Quando reclamei que estava abandonando sua vida por mim, ela disse:
Amiga é para essas horas.
Achei um exagero ela praticamente se mudar pra minha casa só para cuidar de mim, mas admito que me fez bem.
Cheguei a pensar que não iria mais melhorar, então foi um alívio quando acordei e me senti perfeita. Olhei no relógio e era tarde para ir trabalhar, constatei o fato com um leve traço de tristeza, nunca fiquei tanto tempo em casa e a simples ideia de voltar à ativa me deixava eufórica, o que me fez lembrar que antes vou ter que enfrentar minha amiga superprotetora e insistente, já que por ela eu estaria internada ou algo assim. Seja como for, minha decisão estava tomada: amanhã irei trabalhar.
Mel não ficou muito satisfeita comigo. Depois de quase uma hora de discussão, se deu por vencida, pois percebeu que não importava o quanto argumentasse, eu estava irredutível. Fez-me prometer que, se não me sentisse bem, ligaria para ela imediatamente; e garantiu que, se eu tivesse uma recaída, não escaparia de uma avaliação clínica completa. Estremeci só de pensar, mas como estava me sentindo maravilhosamente bem, acabei concordando, já imaginando como conseguiria fugir, caso viesse a me sentir mal.

Na manhã seguinte fui para o trabalho feliz da vida, só lá percebi que meu aniversário era dali a dois dias.
Droga! disse baixinho pra mim mesma, mas Letícia, a outra recepcionista, loira de olhos azuis, magra e alta, escutou.
Aconteceu alguma coisa?
Não, só lembrei-me de uma coisa.
Bom, pela sua cara não deve ter sido coisa boa.
Não é nada. Deixa pra lá.
─ Está bem. Larissa já pensou no que você vai fazer para o seu aniversário? Ah não, essa não. Parece até que ela sabe ler pensamento. Foi difícil não fazer careta com essa pergunta.
Você não gosta do seu aniversário?
Eu costumava gostar tempos atrás, mas agora não. Quem gosta de ficar velha?
É só mentir a idade sua boba, você não parece ter trinta anos.
Vinte e nove, ainda não completei trinta.
Que seja.
Não vou comemorar nada, pretendo passar despercebida.
Até parece que você vai conseguir!
Só você não contar... Ninguém deve se lembrar desta data.Pelo menos era assim que eu pensava.
─ Rá! Quem disse que fui eu quem lembrou?
E não foi? ─ trinquei os dentes.
Não mesmo, sou péssima com datas. Ela deu de ombros.
Ah, não?! Quem lembrou?
Você vai descobrir, é só ter paciência. Ela virou a cara e percebi que seria inútil tentar tirar alguma informação dela, estava perdida.
Mais tarde, em casa, decidi que queria sair um pouco para dar uma espairecida, chamei a Mel e as meninas, que aceitaram prontamente, mas ninguém tinha muito ânimo para se divertir depois do que tinha acontecido com o Saulo. Achei estranho, pois ninguém, exceto Mateus, o conhecia direito, ele não devia ter deixado marcas tão profundas. Ao que parece Saulo conseguiu conquistar todos. Rápido demais para o meu gosto. Eu também estava triste com o que acontecera, mas não ia deixar que isso mudasse o curso da minha vida. Voltei para casa frustrada.

Na manhã do meu aniversário, estava muito ansiosa, sabia que iria acontecer alguma coisa diferente. No hotel fizeram uma festa surpresa para mim, eu estava muito feliz e isso contrariava todos os sentimentos anteriores, mas eu não ia pensar nisso agora, queria aproveitar ao máximo. Com isso acabei me esquecendo de perguntar quem tinha se lembrado do meu aniversário, mas isso já não importava mais. Convidei a Mel para ir às Cataratas depois do trabalho. Mesmo contrariada, ela aceitou, e acho que foi mais para não me deixar sozinha. Então quando saí do trabalho e não a vi em lugar nenhum, deixei recado com um colega para ela me encontrar na passarela. Sem um pingo de paciência fui à frente, seguindo pela trilha de acesso.
Eu estava radiante com o verde da natureza e o vento fresco batendo no meu rosto. Hoje em especial, tinha alguns quatis pelo caminho, que pareciam me homenagear, pois fazia algum tempo que eles não apareciam. Que lugar mais lindo que Deus criou! No início, nem percebi a vertigem. Conforme estava chegando perto da Garganta senti uma tontura nada comum, mas não dei bola, queria olhar o chão que se perdia debaixo de meus pés através da passarela, pois esta é como uma grade suspensa.
Quando cheguei à beirada, dei um giro lento de 360 graus, contemplando as quase quatrocentas quedas, que estavam diante dos meus olhos, como um paredão de água. Minha roupa, meu cabelo já estavam molhados, não me importei e também não notei que havia algo errado. De repente, vi o chão se mover de forma não natural, e de longe escutei uma voz conhecida, gritando o meu nome. Não consegui olhar, mas reconheci a voz de Mel. Senti sua aflição, porém não pude fazer nada, tudo aconteceu rápido demais. Quando senti o primeiro puxão, perdi o equilíbrio, parecia que tinham cordas me puxando em direção à água, é loucura, eu sei, mas não deixa de ser verdade. Não pude nem sequer lutar, pois a tontura me deixou vulnerável e de alguma maneira meu corpo passou por cima da barra de proteção.
Eu estava em queda livre, não acredito. Oh, meu Deus! Vou morrer!
Não! gritei com toda força e, em poucos segundos, senti o impacto na água bem no meio das quedas, sendo puxada fortemente para a Garganta do Diabo.
A força da água era tão grande que me jogava de um lado para o outro, tanto que tive a sensação que todos os ossos do meu corpo estavam se quebrando um a um. Tudo dói, meu Deus, estou perdida. Tentei lutar, mas a dor me incapacitava, eu já estava totalmente submersa.
Não entendi o que estava acontecendo, senti que a morte estava chegando, até que algo segurou meus pés, me puxando cada vez mais para o fundo. Eu já estava entregue, havia desistido.

Minha vida começou a passar diante de mim, meus sonhos, tudo que estava deixando para trás, o filho que nunca tive e que a vida não me deu... Mesmo em meio à dor, comecei a aceitar que tudo estava acabado. Que sina a minha morrer no mesmo dia do meu aniversário. Saulo também passou por isso, será que foi assim com ele? Já não sentia mais, não pensava mais, só via o abismo, a escuridão, será assim a morte?

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