Capítulo 1
E
|
u
nunca pensei em como seria se um dia acordasse em outra realidade, por isso
nunca me preparei para uma coisa assim. Também pudera, quem poderia imaginar
que a vida pudesse mudar como num passe de mágica? Eu também não acreditava
nisso.
Na minha vida, nada veio fácil. Tudo que conquistei
foi com muito esforço e trabalho... Minha rotina sempre foi intensa, nunca tive
tempo para descansar ou para tirar umas férias prolongadas. Jamais reclamei da
vida, sempre observei que existem pessoas em situação mais difícil do que a
minha. Tenho o ensino médio completo, trabalho no hotel que fica em frente às
Cataratas do Iguaçu. Ser recepcionista nesta época do ano requer um esforço
enorme, mesmo assim aproveito a temporada para uma renda extra como guia
turístico de Foz do Iguaçu.
Acordei assustada com meu despertador, avisando que já
são cinco horas da manhã e o dia nem clareou ainda. Já tem três noites que não
durmo direito... O calor do mês de janeiro é insuportável e meu ventilador
velho não dá conta do recado. Vesti rapidamente o meu uniforme: calça preta e
camisa branca, colete da mesma cor da calça e um lenço vermelho. No meu colete,
coloquei um broche de metal na altura do seio, escrito Larissa, que é o meu
nome. Corri para o banheiro para escovar os dentes e arrumar meu cabelo com o
penteado de todos os dias: um coque apertado no alto da cabeça. Não demorou,
escutei a buzina do carro da empresa esperando para me levar ao trabalho.
─ Que droga, já são
5h45. ─ Peguei minha bolsa rapidamente e
saltei porta afora.
─ Bom dia,
Walter!
─ Bom dia! Como
você está, Larissa? Dormiu bem? ─ disse o
motorista do microônibus, um homem de meia idade e estatura mediana, pele bem
clara, olhos e cabelo castanho-claros.
─ Não dormi
direito esta noite, mas estou bem, estou me acostumando com a falta de sono.
─ Se continuar
assim, você vai ter de ir ao médico. — Que boca
grande a minha.
─ Até parece... É
por causa do calor. — Eu não gosto
que se preocupem comigo.
─ Tá bom, então.
Ele fez uma careta
─ Fui ─ falei rapidamente e caminhei mais rápido ainda, antes
que ele começasse o sermão do dia sobre como eu deveria cuidar da minha saúde,
estava sem humor para isso.
─ Até mais — Walter respondeu.
Fui até as últimas poltronas e me acomodei para tirar
uma soneca, enquanto o ônibus fazia seu percurso diário e se dirigia para o
hotel. Quando percebi, já estávamos entrando no Parque Nacional do Iguaçu, e em
menos de cinco minutos chegamos. Quando ele estacionou, eu esperei todos
saírem, admirando através da janela as belezas da natureza. Em meio a uma
abertura das árvores, dava para ver várias cascatas. Levantei e fui até a porta
do ônibus, olhei o relógio e faltava meia hora para o horário do meu trabalho,
me despedi de Walter e resolvi dar uma pequena caminhada antes de ir. Isso iria
me custar o café da manhã, mas valia a pena contemplar tudo. Andei até as
barras de proteção e comecei a descer as escadarias que levam à passarela que
vai à Garganta do Diabo. A bruma de pura água que se levanta das quedas começou
a molhar a minha roupa, as gotículas que se formaram no meu rosto escorriam como
se fosse suor. A brisa era suave e, ao mesmo tempo, o cheiro da mata e da
umidade, era tão relaxante. Antes que eu chegasse à ponta da passarela, senti
uma energia diferente de tudo que um dia senti na minha vida: uma certa
tontura, minhas pernas bambas... O que era muito estranho, por isso tive
vontade de correr dali, quando ouvi uma voz estranha dizendo em meu ouvido:
─ Larissa,
venha!
Corri. Entrei no hotel meio tonta. Fui até o vestiário.
Sequei meu rosto e meus braços e fui para a recepção, ainda faltava um tempo
para o meu horário, então sentei em uma poltrona olhando tudo ao meu redor, os
sofás colocados casualmente para algum hóspede se sentar, e fiquei
impressionada com a elegância do lugar, todo em tom dourado. Estava pensando no
que acabara de acontecer comigo, sem encontrar alternativa que me tirasse da
situação de louca. Bom, talvez sejam minhas noites maldormidas.
O dia se arrastou, eu não via a hora de ir para casa,
sempre trabalho como guia de turismo depois do meu expediente; mas hoje não, o
que era bom, pois estava exausta e precisava descansar, quem sabe assim as
alucinações passariam.
Entrei em casa e olhei meu fogão velho e vermelho, do
tempo da minha avó, e minha mesa de madeira com uma cadeira. Eu tinha que fazer
alguma coisa pra comer, só que estava sem fome. Deveria estar ficando doente
mesmo, então decidi tomar um banho bem gelado. Tirei a roupa e coloquei-a
pendurada num prego atrás da porta, e entrei no chuveiro. A água saiu quente
por causa do calor, mas depois de alguns instantes veio gelada, refrescando o meu
corpo... Tontura... Que estranho.
Saí do banho e não me sequei, fui direto para a cama,
liguei meu ventilador na potência máxima, me deitei e adormeci. Tive um
pesadelo, muito real por sinal. Nele eu estava me afogando, me debatendo nas
correntezas das águas revoltas, faltavam-me forças para lutar, me assustei
quando acordei com meu próprio grito.
Olhei a janela, já estava escuro, o que significava
que eu havia dormido por horas. Olhei no relógio, 19h35. Era 14h45 quando eu me
deitei.
O telefone tocou... Estendi a mão até o criado-mudo
para atender a ligação.
─ Alô! ─ sussurrei.
─ Larissa?
─ Sim, quem
gostaria?
─ Lari, é a Mel.
Estou ligando para saber se você quer sair hoje com a galera, tem dias que você
não dá notícias, aconteceu alguma coisa?
Mel é uma amiga que conheci logo que comecei a
trabalhar no Hotel das Cataratas, ela era recepcionista também, pouco tempo
depois saiu, mas a nossa amizade continuou.
─ Não. Está tudo
bem. Muito trabalho ultimamente e pouco descanso. Aonde vocês vão?
─ Nós estávamos
pensando em ir a uma pizzaria e depois no Celeiro, ouvi dizer que tem uma banda
muito boa tocando lá hoje.
─ Deixa pra
próxima, amanhã tenho que acordar cedo.
Pensando bem, talvez seja uma boa ideia ir com eles
comer alguma coisa. Minha barriga roncou só pra mostrar qual era a sua posição.
─ Pare com isso!
Tem que tirar um tempo para você, desse jeito vai enlouquecer.
─ Vou à pizzaria
e depois volto para casa. A balada, vou deixar para outro dia.
─ Que seja. Irá
se arrepender se não for.
Ignorei este comentário.
─ Vou me
arrumar.
─ Daqui a meia
hora pegamos você.
─ Até.
Desliguei o telefone e me espreguicei.
─ Ai, ai... — Levantei e tomei um banho rápido, fui até a janela e
olhei como o céu estava estrelado, muito lindo. Que preguiça de me arrumar e
aquela tontura surgindo de novo... Com muito esforço, abri meu guarda-roupa,
peguei uma blusinha verde-água (a minha favorita), uma calça jeans qualquer e escolhi
um tamanco combinando com meu look.
Meu cabelo estava horrível, puxei num rabo de cavalo deixando uma mecha na
frente para colocar atrás da orelha, me maquiei um pouco para esconder as olheiras
e passei um perfume para completar e pronto... Acho que estou apresentável!
Olhei no relógio, ainda faltavam uns cinco minutos para eles chegarem. Liguei a
televisão, não achei nada de interessante em nenhum canal. O barulho do carro
chamou minha atenção, antes que tocassem a buzina, desliguei a televisão da
tomada, peguei minha bolsa e saí correndo.
─ E aí, Larissa,
tudo bem? — perguntou um rapaz esguio, de cabelo castanho-escuro e olhos
verdes, que estava sorrindo para mim. Mateus era namorado da Mel há pelo menos
uns dois anos. No início eu não gostava muito dele, e esse sentimento era
recíproco.
Mel tinha saído do banco da frente para dar lugar para
eu passar para o de trás.
─ Oi, Mateus. Quanto
tempo! Trabalhando muito?
─ Sabe como é.
Olhei para a Mel, difícil não reparar na sua beleza
excêntrica, com seus cabelos negros até a cintura, olhos negros e pele morena
clara, realmente bonita e naquele momento estava me olhando de uma maneira que
não me deixou muito tranquila... Ela estava aprontando.
No banco de trás do Gol vermelho, estava sentado um
rapaz desconhecido, de pele clara, cabelos escuros e ondulados, olhos castanho-escuros
quase pretos, que me olhava de uma forma estranha.
─ Quero
apresentar meu amigo Saulo, colega de faculdade. Saulo esta é Larissa, uma
grande amiga, de longa data ─ disse Mateus.
Ele estava cursando o terceiro período de Sistemas de Informação, esta era a
primeira vez que algum colega saía conosco, pelo menos a primeira vez em que eu
estivesse junto.
─ Oi, é um
prazer te conhecer — Saulo se antecipou.
─ O prazer é
meu.
Senti qual era a intenção dos dois trazendo um amigo
de Mateus para sair conosco, o estranho era que ela me falou de uma galera.
Sair em quatro indica um encontro duplo, não gostei da ideia.
─ Mel, cadê o
pessoal?
─ Amanda ligou
desmarcando, parece que chegou visita na casa dela de última hora. Henrique não
sai sem ela, e as outras meninas, espero que já estejam lá, isso se não tiverem
encontrado companhia mais interessante.
Muito conveniente, pensei comigo. Tudo que ela falou
fazia sentido: Amanda e Henrique não se largavam e muitas vezes Samanta e Laura
nos deixaram plantadas esperando, enquanto elas aproveitavam a noite em algum
outro lugar da cidade, muito bem acompanhadas, companhia de uma noite e nada
mais.
Justo hoje que a última coisa que quero é uma paquera!
Espero fervorosamente que elas estejam onde Mel disse que estariam. Meus
pensamentos foram interrompidos.
─ Larissa! ─ Saulo me chamou, e de má vontade respondi: — Sim?
─ Posso te
chamar de Lari?
─ Me desculpa,
mas prefiro que me chame de Larissa, é que não gosto muito de apelidos.
─ Entendo... Desculpe-me.
─ Tudo bem.
─ Você mora há
muito tempo aqui em Foz?
─ Sim ─ dei uma resposta curta, querendo colocar um ponto
final na conversa.
Estava na cara que ele estava querendo flertar comigo.
Virei a cara e olhei para a janela, vendo a rua que passava. Ele pareceu
entender meu silêncio, e também fez o mesmo. Despertou minha curiosidade,
quando ajo assim os rapazes em geral tentam penetrar na minha armadura, mas o
silêncio dele foi surpreendente de tal maneira, que perguntei:
─ Você mora em
qual bairro?
Ele me fitou
com os olhos confusos, mas sorriu e respondeu:
─ Moro no Polo
Centro.
─ Humm.
─ Por quê?
─ Só
curiosidade.
Mel olhou para trás e gostou de ver alguma conversa
surgindo ali.
─ Agora eu estou
curioso... ─ disse ele.
─ Com o quê?
─ Agora há pouco
tentei puxar conversa, mas você não pareceu muito interessada, o que te fez
mudar de ideia?
Ops! Isso é o que
eu chamo de direta! Senti o rubor em minha face.
─ Foi impressão
sua.
Só me resta esperar que ele deixe essa passar. Idiota!
─ Então,
desculpe. Foi só impressão.
Ufa!!!
─ Então, vai falar há
quanto tempo mora em Foz do Iguaçu?
─ Eu nasci aqui
e nunca morei em outro lugar.
Olhei para ele tentando entender o porquê de se
importar tanto.
─ Interessante... ─ disse como se falasse consigo mesmo.
Eu não respondi, esperei que ele terminasse a frase.
─ Eu nunca senti
alguém com sua energia, é algo sobrenatural.
─ Como?
─ Eu sou uma
pessoa muito sensível, eu consigo sentir a energia que emana das pessoas. Não sei
como explicar direito, só sei que sinto, mas a energia que vem de você é algo
muito maior, é quase como se você não fosse humana.
─ Do que está
falando? Não estou entendendo? ─ Mel e Mateus
se interessaram pelo assunto ou só queriam achar algo para tirar sarro.
─ Bom, isso
explica muito as coisas, né Mateus? ─ falou Mel em
meio a risos. Encarei-a com cara feia, não via graça em nada.
─ Que história é
essa de energia que você está falando? Você nunca tinha falado disso antes,
achei que essas coisas eram de mulher e agora você vem com essa?! ─ Mateus estava tentando entender, mas pela sua cara eu
podia ver que a qualquer momento isso ia ser demais para ele, e explodiria de
tanto rir.
Agora é minha vez.
─ Agora quem
está curiosa sou eu.
─ Devo
imaginar... Nunca ouviu algo assim? ─ Saulo olhava
para mim.
─ Nunca! Isso é
ridículo! Sou muito normal para não ser uma humana e, apesar de eu ser adotada,
não que isso venha ao caso, creio que não sou uma alienígena, acho que teria
uma nave se isso fosse verdade.
Minha cabeça estava girando, tentando entender como um
estranho podia dizer tais coisas. Sempre soube que era um pouco estranha, mas e
daí? Todo mundo é diferente.
─ Não foi isso
que eu quis dizer, mas sim que você é alguém especial. Não sei o porquê, mas é.
Só isso, mais nada, e não sei se percebeu, mas eu estou fazendo papel de bobo
aqui, ao abordar este assunto.
─ Devia ter
pensado nisso antes de ter falado... E o que você queria que eu pensasse, nem
nos conhecemos e você já me vem com essa?!
─ Isso é
verdade, mas não pude evitar.
Agora Mel e Mateus riam de verdade, mas eu e Saulo
estávamos absortos em nossa conversa, era como se eles não existissem. Percebi
que parecia que o conhecia há muito tempo, algo além da minha compreensão.
Nossa hostilidade foi crescendo a cada minuto, estávamos quase discutindo, o
que era no mínimo estranho, levando em conta que eu acabara de conhecê-lo. As
piadas da Mel não pareciam afetá-lo da forma como as minhas palavras foram
ditas e o mesmo acontecia comigo. Eu já estava nervosa.
Chegamos à pizzaria, e para minha alegria, Samanta e
Laura estavam lá conforme o combinado. Isso era muito bom, pois pude deixar de
lado Saulo e seu assunto irritante, e me concentrei nas meninas tentando saber
todas as novidades. Não que isso realmente importasse.
Percebi que Saulo ainda me encarava de forma estranha,
e se antes não queria ir ao Celeiro, agora era assunto decidido. Irritava-me a
forma como sua presença me afetava. Não via a hora de poder ir para casa.
Depois de jantarmos, pedi a Laura que me levasse embora, pois não queria o
desprazer de conviver com Saulo por mais nem um minuto sequer. Ela hesitou, mas
por fim concordou. Ninguém ousou discutir comigo quando disse que iria para
casa. Foi assim que minha noite acabou.
Capítulo 2
R
|
olei
na cama de um lado para o outro, tentando dormir e nada... Mais uma noite
insone para minha coleção, nem mesmo o fato do clima ter refrescado ajudou,
teria que ir ao médico, mas não queria pensar nisso agora.
Lembrei-me do que Saulo tinha me falado na noite
anterior, e isso só me deixou mais incomodada. Por fim, desisti de dormir e
liguei o abajur.
Olhei para o relógio planejando o que iria fazer no
restante da noite e fiquei assustada, estava quase na hora do despertador
tocar. Como podia ser? Parecia que acabara de deitar, não me lembrava de ter
dormido, tentei entender o que aconteceu, mas simplesmente não tinha
explicação. Alonguei-me e, para minha surpresa, me senti descansada como há
tempos não me sentia.
Fiz uma superprodução, queria ver a cara dos meus
colegas quando me vissem. Escutei a buzina, peguei minha mochila e entrei
saltitante no ônibus.
─ Bom dia,
Walter!
─ Bom dia,
Larissa. Pelo visto você dormiu melhor esta noite.
Se dormi não sei, mas o que importa? Estou me sentindo
bem.
─ Digamos que
sim.
─ Vai lá para o
fundo hoje?
─ Não. Vou ficar
por aqui mesmo. ─ Apontei para
as primeiras poltronas do ônibus.
─ Então, quer
dizer que hoje está disposta a entrar na bagunça com os outros?
─ Ando muito
distante de tudo acho melhor despertar.
─ Já estava
preocupado com você, tem alguns meses que não é mais aquela menina sorridente e
extrovertida de antes, os funcionários novos nem a conhecem. Você se limita a
apenas cumprimentá-los, quando eu falo para alguém como você era, ninguém
acredita.
Tinha que concordar, nem quando perdi meus pais
adotivos na adolescência, ou mesmo quando me separei, não fiquei tão afastada
do mundo como estava sendo ultimamente. O pior de tudo é que nem sei o porquê,
simplesmente mudei, sem explicação nenhuma.
─ Vou me
socializar, pelo menos vou tentar.
─ Então,
seja bem-vinda.
As pessoas começaram a entrar no ônibus e, embora
tentasse me relacionar com elas, era difícil. Antes não era assim, não acho que
seja depressão, eu estou muito bem sentimentalmente e sozinha, a separação me
devolveu a vida.
No hotel, tomei meu café da manhã com os outros
funcionários, conversei um pouco, mas logo tive que ir para o meu posto de
trabalho, olhei o calendário e não gostei do que vi, faltava menos de um mês
para o meu aniversário.
O telefone do hotel tocou.
─ Recepção Resort Cataratas, Larissa, bom dia!
─ Larissa é a
Mel. Desculpe ligar no seu trabalho.
─ Oi, aconteceu
alguma coisa?
─ Não. É que
vamos passear nas Cataratas hoje à tarde e queremos que você vá conosco.
─ Não posso.
Hoje agendei um passeio para a Usina de Itaipu com um grupo de turistas.
─ Que pena!
Saulo queria aproveitar a oportunidade para se desculpar, é aniversário dele.
Ele tinha esperança de ter seu perdão como presente ou algo assim.
─ Ha-ha, até parece,
ele vai sobreviver!
─ Coitado!
─ Tenho que
desligar, me liga à noite.
─ Está bem então,
beijos.
─ Beijinhos.
Desliguei o telefone, e sem querer me peguei pensando
no Saulo, quanto menos queria pensar nele, acontecia exatamente o contrário.
A manhã passou rapidamente e já estava na hora de ir
embora.
Peguei o primeiro ônibus que levava à saída do Parque
Nacional e fui a outro resort que
ficava nas proximidades.
O grupo já estava reunido esperando por mim.
O passeio incluía uma visita ao Ecomuseu da Itaipu pra
conhecer um pouco da história do lugar, e logo depois a usina.
Os turistas de hoje tiveram sorte, por causa da alta
vazão das águas, coisa que não é muito comum nessa época do ano, duas comportas
estavam abertas fazendo um espetáculo à parte. Mais tarde, decidiram ficar até
o anoitecer para verem o espetáculo de luzes na Usina Hidrelétrica de Itaipu.
Todos ficaram admirados. Quando meu dia terminou, eu estava exausta.
Entrei em casa, o telefone estava tocando e corri para
atendê-lo.
─ Alô!
─ Larissa?
─ Mel?
─ Sim, sou eu.
Aconteceu algo horrível. ─ Ela estava
desesperada! Percebi pelo seu tom de voz assustado. Nesta hora foi como se eu
tivesse tido uma descarga elétrica! Gelei instantaneamente.
─ O que
aconteceu? ─ perguntei.
─ Saulo morreu!
─ A voz do outro lado estava
trêmula, quase chorando. Eu fiquei paralisada
─ Quer dizer,
eu acho que ele morreu, ele caiu na Garganta do Diabo.
Ah, meu Deus! Ah, meu Deus! É difícil, é impossível!
Com certeza, ele morreu! Ah, não! Senti como se meu mundo estivesse
desmoronando.
─ Larissa, você
está aí? ─ Levei alguns segundos para
assimilar.
─ Sim, estou. Como
aconteceu?
Só percebi que estava chorando quando minhas lágrimas
caíram como cachoeira em minha mão.
─ Ele comentou
que estava sentindo uma tontura, não demos importância, então ele se desequilibrou
e tombou por cima da barra de proteção. Tudo foi muito rápido, não conseguimos
impedir, a culpa é nossa!
Mel demorou umas duas vezes mais para falar esta
frase, e ainda assim tive que me concentrar para entender o que ela estava
falando.
─ Para de se
culpar, acidentes acontecem, vocês não têm culpa por ele ter passado mal.
─ Mas se o
tivéssemos levado a sério, teríamos ido embora e nada disso tinha acontecido.
─ Onde você
está? Estou indo aí agora.
─ Não venha.
Estou na delegacia. Liga a televisão no canal 16, depois te ligo. Até mais.
Ela nem esperou eu me despedir e desligou. Liguei a TV, e a repórter estava entrevistando um
salva-vidas que estava de plantão. Estavam tendo dificuldades para encontrar o
corpo, ele havia caído em uma região de difícil acesso. Algumas medidas de
segurança tiveram que ser tomadas para salvaguardar as vidas dos bombeiros. As
buscas iriam se estender madrugada adentro.
Quando percebi, estava soluçando de tanto chorar, e
acabei adormecendo abraçada em minhas pernas na frente da TV.
No outro dia, eu estava horrível, com febre, dor de
cabeça e não consegui ir para o trabalho. Fui ao médico que me recomendou ficar
em casa por, pelo menos, três dias de molho por conta da gripe. Que maravilha!
À tarde, Mel ligou me dizendo que tudo estava na
mesma. Falei para ela que ia passar três dias em casa, ela veio ficar comigo.
Nas noites seguintes, durante as poucas horas que dormi, tive pesadelos com
muita água, onde eu estava me afogando, e Saulo estava presente na maioria
deles, tentando me ajudar.
Depois de três dias passando mal, cheguei a uma
conclusão: definitivamente, eu estava morrendo, mas sem saber o que fazer.
Mesmo me sentindo um lixo, fui trabalhar me arrastando, quando a condução
chegou.
─ Oi, Larissa!
─ Oi ─ respondi
com uma careta.
─ O que você tem,
menina? Está doente? Por que não foi ao médico?
─ Eu fui, mas já
acabaram meus dias de atestado.
─ Por que não
foi novamente?
─ Estou bem... ─ menti, mas não convenci ninguém. Sem dar tempo para
argumentos, corri e me sentei no fundo do ônibus como de costume, e encostei a
cabeça na janela. Queria com todas as minhas forças dormir, mas era um esforço
inútil, pois a cada dia que passava, dormia menos. O meu corpo doía e a falta
de ar era constante.
Tentei trabalhar, mas meu organismo não respondia aos
meus comandos, por fim fui parar no médico de novo, contra a minha vontade, é
claro. Mas no fundo até fiquei grata, pois senti que a qualquer momento iria
desmaiar. Nunca havia ficado doente em minha vida, nem mesmo com um simples resfriado,
agora que me atentei a este fato, eu não fazia ideia do quanto isso era ruim.
Por que será que nunca adoeci? Não é normal.
A próxima quinzena demorou muito para passar, talvez
por causa do meu estado físico. Os médicos não sabem dizer o que está
acontecendo, querem me furar (agulhas, odeio agulhas!), precisam fazer exames,
só que isso é algo que me assusta, por isso fugi do hospital. Idiotice a minha,
eu sei, mas não pude evitar. Não tenho medo, mas sinto como se fosse muito
errado deixar que colhessem o meu sangue. Mesmo que seja por uma boa razão, não
pude deixar.
Mel só se ausentava para ir trabalhar e logo voltava
para ver como eu estava. Quando reclamei que estava abandonando sua vida por
mim, ela disse:
─ Amiga é para
essas horas.
Achei um exagero ela praticamente se mudar pra minha
casa só para cuidar de mim, mas admito que me fez bem.
Cheguei a pensar que não iria mais melhorar, então foi
um alívio quando acordei e me senti perfeita. Olhei no relógio e era tarde para
ir trabalhar, constatei o fato com um leve traço de tristeza, nunca fiquei
tanto tempo em casa e a simples ideia de voltar à ativa me deixava eufórica, o
que me fez lembrar que antes vou ter que enfrentar minha amiga superprotetora e
insistente, já que por ela eu estaria internada ou algo assim. Seja como for,
minha decisão estava tomada: amanhã irei trabalhar.
Mel não ficou muito satisfeita comigo. Depois de quase
uma hora de discussão, se deu por vencida, pois percebeu que não importava o
quanto argumentasse, eu estava irredutível. Fez-me prometer que, se não me
sentisse bem, ligaria para ela imediatamente; e garantiu que, se eu tivesse uma
recaída, não escaparia de uma avaliação clínica completa. Estremeci só de
pensar, mas como estava me sentindo maravilhosamente bem, acabei concordando,
já imaginando como conseguiria fugir, caso viesse a me sentir mal.
Na manhã seguinte fui para o trabalho feliz da vida,
só lá percebi que meu aniversário era dali a dois dias.
─ Droga! ─ disse baixinho pra mim mesma, mas Letícia, a outra recepcionista,
loira de olhos azuis, magra e alta, escutou.
─ Aconteceu
alguma coisa?
─ Não, só
lembrei-me de uma coisa.
─ Bom, pela sua
cara não deve ter sido coisa boa.
─ Não é nada.
Deixa pra lá.
─ Está bem. Larissa já
pensou no que você vai fazer para o seu aniversário? ─ Ah não, essa não. Parece até que ela sabe ler
pensamento. Foi difícil não fazer careta com essa pergunta.
─ Você não gosta
do seu aniversário?
─ Eu costumava
gostar tempos atrás, mas agora não. Quem gosta de ficar velha?
─ É só mentir a idade
sua boba, você não parece ter trinta anos.
─ Vinte e nove,
ainda não completei trinta.
─ Que seja.
─ Não vou
comemorar nada, pretendo passar despercebida.
─ Até parece que
você vai conseguir!
─ Só você não
contar... Ninguém deve se lembrar desta data. ─ Pelo menos era assim que eu pensava.
─ Rá! Quem disse
que fui eu quem lembrou?
─ E não foi? ─ trinquei os dentes.
─ Não mesmo, sou
péssima com datas. ─ Ela deu de
ombros.
─ Ah, não?! Quem
lembrou?
─ Você vai
descobrir, é só ter paciência. ─ Ela virou a
cara e percebi que seria inútil tentar tirar alguma informação dela, estava
perdida.
Mais tarde, em casa, decidi que queria sair um pouco
para dar uma espairecida, chamei a Mel e as meninas, que aceitaram prontamente,
mas ninguém tinha muito ânimo para se divertir depois do que tinha acontecido
com o Saulo. Achei estranho, pois ninguém, exceto Mateus, o conhecia direito,
ele não devia ter deixado marcas tão profundas. Ao que parece Saulo conseguiu
conquistar todos. Rápido demais para o meu gosto. Eu também estava triste com o
que acontecera, mas não ia deixar que isso mudasse o curso da minha vida.
Voltei para casa frustrada.
Na manhã do meu aniversário, estava muito ansiosa,
sabia que iria acontecer alguma coisa diferente. No hotel fizeram uma festa
surpresa para mim, eu estava muito feliz e isso contrariava todos os
sentimentos anteriores, mas eu não ia pensar nisso agora, queria aproveitar ao
máximo. Com isso acabei me esquecendo de perguntar quem tinha se lembrado do
meu aniversário, mas isso já não importava mais. Convidei a Mel para ir às
Cataratas depois do trabalho. Mesmo contrariada, ela aceitou, e acho que foi
mais para não me deixar sozinha. Então quando saí do trabalho e não a vi em
lugar nenhum, deixei recado com um colega para ela me encontrar na passarela.
Sem um pingo de paciência fui à frente, seguindo pela trilha de acesso.
Eu estava radiante com o verde da natureza e o vento
fresco batendo no meu rosto. Hoje em especial, tinha alguns quatis pelo
caminho, que pareciam me homenagear, pois fazia algum tempo que eles não
apareciam. Que lugar mais lindo que Deus criou! No início, nem percebi a
vertigem. Conforme estava chegando perto da Garganta senti uma tontura nada
comum, mas não dei bola, queria olhar o chão que se perdia debaixo de meus pés
através da passarela, pois esta é como uma grade suspensa.
Quando cheguei à beirada, dei um giro lento de 360
graus, contemplando as quase quatrocentas quedas, que estavam diante dos meus
olhos, como um paredão de água. Minha roupa, meu cabelo já estavam molhados,
não me importei e também não notei que havia algo errado. De repente, vi o chão
se mover de forma não natural, e de longe escutei uma voz conhecida, gritando o
meu nome. Não consegui olhar, mas reconheci a voz de Mel. Senti sua aflição,
porém não pude fazer nada, tudo aconteceu rápido demais. Quando senti o
primeiro puxão, perdi o equilíbrio, parecia que tinham cordas me puxando em
direção à água, é loucura, eu sei, mas não deixa de ser verdade. Não pude nem
sequer lutar, pois a tontura me deixou vulnerável e de alguma maneira meu corpo
passou por cima da barra de proteção.
Eu estava em queda livre, não acredito. Oh, meu Deus!
Vou morrer!
─ Não! ─ gritei com toda força e, em poucos segundos, senti o
impacto na água bem no meio das quedas, sendo puxada fortemente para a Garganta
do Diabo.
A força da água era tão grande que me jogava de um
lado para o outro, tanto que tive a sensação que todos os ossos do meu corpo
estavam se quebrando um a um. Tudo dói,
meu Deus, estou perdida. Tentei lutar, mas a dor me incapacitava, eu já
estava totalmente submersa.
Não entendi o que estava acontecendo, senti que a
morte estava chegando, até que algo segurou meus pés, me puxando cada vez mais
para o fundo. Eu já estava entregue, havia desistido.
Minha vida começou a passar diante de mim, meus
sonhos, tudo que estava deixando para trás, o filho que nunca tive e que a vida
não me deu... Mesmo em meio à dor, comecei a aceitar que tudo estava acabado.
Que sina a minha morrer no mesmo dia do meu aniversário. Saulo também passou
por isso, será que foi assim com ele? Já não sentia mais, não pensava mais, só
via o abismo, a escuridão, será assim a morte?
Nenhum comentário:
Postar um comentário